Outro dia me surpreendi me perguntando como seria minha vida se eu não acreditasse em Deus. Em termos positivos, quis saber a respeito da função de Deus em minha vida (já sei, você vai dizer que reduzi deus a uma coisa e estabeleci com ele uma relação mecânica e funcional, mas deixa pra lá, você vai ver que não é isso, só estou usando a melhor palavra que achei). O primeiro impulso foi na direção da questão ética: Deus é minha matriz de certo e errado, bem e mal. Há muita coisa que faço e deixo de fazer na vida por acreditar que Deus é um padrão a ser seguido ou obedecido, não necessariamente por causa de Deus em si, mas a bem de quem o obedece ou segue: algo como seguir as orientações de um manual de instruções – você pode fazer do seu jeito, mas a coisa não vai funcionar, e o resultado não é que o manual vai ficar triste ou bravo com você, mas que a coisa não vai funcionar mesmo.
Logo depois desta conclusão rápida, me pareceu óbvio que Deus não seria a
única alternativa para que eu tivesse uma orientação ética: os ateus e
agnósticos também têm sua ética. O passo seguinte foi imaginar que outra função
Deus ocuparia em minha vida além da referência ética.
Provavelmente você afirmaria o óbvio: Deus é aquele que cuida de mim, me
protege, provê para o meu
bem e minha felicidade. Embora eu acredite nisso, na verdade, não me basta, pois
a vida está cheia de acontecimentos que me induziriam a acreditar exatamente o
contrário. Caso eu dissesse a um cético que Deus é como um pai,
mas um pai todo-poderoso que cuida de mim, certamente eu seria bombardeado de
perguntas. Como disse Robert De Niro: “Se Deus existe, ele tem muito o que
explicar”. Além disso, estar sob o cuidado de um superprotetor não é a razão
porque acredito em Deus: de fato, abro mão de ser protegido – minha
solidariedade com a raça humana não me permite esperar melhor sorte do que a das
crianças abandonadas, dos enfermos crônicos, dos miseráveis e vitimados pelas
atrocidades dos maus. Ou Deus protege todo mundo, ou a proteção não serve como fundamento para
a crença nele.
A idéia de um ser lá em cima fazendo e acontecendo aqui em baixo, como um
mestre enxadrista que faz
dos seres humanos peças num tabuleiro cósmico nunca me agradou. Mas mesmo assim,
acredito nisso: sou daqueles que acredita que Deus está no controle do universo
e da história. O que quero dizer é que não acredito em deus como se as coisas
que acontecem ou deixam de acontecer fossem resultado de decisões divinas, do
tipo: vou dar este emprego pra ele? vou curar esta criança? vou dar este câncer
de mama para ela? vou fazer com que eles se casem?, e assim por diante, como se
Deus fosse uma máquina de decisões que não para nunca e afeta tudo quanto existe
em tudo quanto é lugar em relação a todo mundo.
A maneira como percebo Deus é mais ou menos como percebo o sol: ele
simplesmente está lá. Acredito em Deus mais ou menos assim: Deus está, ou se
preferir, Deus é. Assim como o sol irradia seu calor sem cessar, também Deus
afeta tudo em todo lugar em relação a todo mundo. O sol não precisa tomar
decisões: ele simplesmente está lá. Assim também em relação a Deus.
É verdade que nem todas as pessoas e nem todos os lugares são afetados pelo
sol, e também que as pessoas e lugares que são afetados pelo sol experimentam o
sol de maneira diferente e com conseqüências as mais variadas. Mas não por causa
do sol. O sol está sempre lá e é sempre do mesmo jeito. O que muda é a realidade
sobre a qual o sol incide: se a pessoa está à sombra é afetada de um jeito, se
está descoberta é afetada de outro; o fruto do topo da árvore é afetado de um
jeito, escondido entre as folhas, de outra; a água do lago é afetada de um
jeito, empoçada, de outro; uma planta em boa terra e irrigada é afetada de um
jeito, em solo ruim e seca, de outro. O sol está sempre lá e do mesmo jeito,
aqui embaixo é que as coisas são diferentes.
Assim também em relação a Deus. Ele é, e sempre do mesmo jeito, as condições
que lhe são dadas é que mudam: uma criança sozinha na rua e outra num ambiente
familiar de afeto e amor; um homem que aproveitou bem suas oportunidades de
estudo e formação profissional e outro que não teve a mesma sorte; alguém com
uma doença congênita e outra pessoa com propensão atlética; a periferia do Haiti
e o condomínio na Califórnia. Deus é, e sempre o mesmo, fluindo de maneira plena
e equânime sobre tudo e todos, em todo tempo e lugar. As realidades sob sua
influência é que são distintas. Por esta razão as conseqüências de sua
influência são diversas e jamais podem ser padronizadas.
Já imagino o que você está pensando. Você acha que acabei de tirar a dimensão
pessoal de Deus, e passei a tratar Deus como uma força ou uma energia. Faz
sentido, mas tenho uma saída. A diferença entre Deus e uma força ou energia é
que as forças e energias não afetam dimensões pessoais. Por exemplo, não é
possível prescrever 30 minutos de banho de sol para adquirir capacidade de
perdoar, 20 minutos de banho de chuva para se livrar do vício de mentir, ou 45
minutos de banho de luz para se encher de compaixão. Essas coisas: amor, perdão,
misericórdia, justiça, solidariedade, pureza de coração, alegria e saudades são
atributos pessoais, relativos a seres conscientes, auto-conscientes, com
capacidades afetivas-emocionais, intelectuais e racionais, e volitivas. Por esta
razão, o sol é apenas uma metáfora – incompleta, como toda metáfora – para
Deus.
Deus não é uma energia ou uma força impessoal, mas o Ser–em–Si, fundamento
pessoal de toda a realidade existente. Como disse São Paulo, apóstolo: em Deus
somos, nos movemos e existimos.
Dallas Willard me ajudou muito a compreender isso quando afirmou que a
principal maneira como somos afetados por Deus é através de “pensamentos e
sentimentos que são nossos, mas não tiveram origem em nós”. Esta é minha
experiência de Deus. Continuo acreditando que Deus está no controle de tudo, é
livre para tomar decisões e afetar a realidade conforme sua vontade, cuida de
mim e de todo mundo, faz e acontece na história e nas minhas circunstâncias,
dispões de pessoas para a vida e para a morte, e o que mais você quiser ou
considerar necessário atribuir como capacidade e direito a alguém que seja
chamado Deus, afinal, por definição, Deus é incondicionado e ilimitado. Mas
todas estas coisas atribuídas a Deus me são imponderáveis e inacessíveis. O que
me afeta de fato é que crendo em Deus e conscientemente me submetendo a Ele,
experimento pensamentos e sentimentos que são meus, mas não têm origem em mim.
Sou levado a um estado de ser ao qual jamais conseguiria chegar sozinho. Deus é
meu interlocutor amoroso. Deus é meu companheiro de viagem.
O que acontece fora de mim, se Deus faz ou deixa de fazer, se foi ele quem
fez ou deixou de fazer, não me diz respeito, minha razão não alcança, e,
portanto, não é objeto de minha preocupação para caminhar pela vida. Mas o que
acontece dentro de mim, isso sim, é tudo quanto eu tenho e me basta. Tudo quanto
tenho para orientar a minha peregrinação existencial são sentimentos e
pensamentos que são meus, muitos deles que não tiveram origem em mim. Isso é
questão de fé. E essa é a minha fé: estou sob Deus, suplicante e humildemente
dependente de seu amor para me tornar tudo quanto estou destinado a ser,
independente do que me possa acontecer.
A mim me basta saber que em pastos verdejantes às margens de águas puras e
cristalinas, ou no vale da sombra da morte, nada preciso temer, pois Deus está
comigo, refrigerando-me a alma, guindo-me pelos caminhos da justiça por amor do
seu nome. A mim me basta saber que se Deus é por mim, ninguém pode ser contra
mim, pois nada pode me separar do amor de Cristo: nem tribulação, ou angústia,
ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada, pois estou convencido
de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro,
nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na
criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus,
nosso Senhor.
Não sei como seria minha vida se eu não acreditasse em Deus. Muito menos se
Deus não acreditasse em mim. E nem quero saber.
Ed. René
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