Todos conhecemos pessoas que frequentam a igreja e, no
entanto, se comportam de modo contrário aos valores evangélicos: tratam
subalternos com desrespeito, sonegam direitos de empregados, discriminam por
razões raciais ou sexuais.
Pessoas que enchem a boca de Deus e trazem o coração
entupido de ira, inveja, soberba, são indiferentes aos direitos dos pobres e
omitem-se em situações graves que lhes exigem solidariedade.
E temos a nossa volta, no círculo de amizades, pessoas
ateias ou agnósticas que, em suas atitudes, transparecem tudo o que o Evangelho
acentua como valores: amor ao próximo, justiça aos excluídos, solidariedade aos
necessitados, partilha de bens, etc.
O catecismo da Igreja Católica, aprovado por João Paulo II,
em 1992, e elaborado sob a supervisão do téologo Ratzinger, futuro papa Bento
XVI, define a fé como “adesão pessoal do homem a Deus”. E acrescenta que é “o
assentimento livre de toda a verdade que Deus revelou”. E a portadora dessa
verdade é a igreja.
Assim, só teria verdadeira fé cristã quem submete seu
entendimento ao que ensina a autoridade eclesiástica (papa, bispos e pastores).
Por causa dessa maneira de entender a fé, o que se crê se tornou mais
importante do que como se vive. Criou-se uma ruptura entre fé e vida. A ponto
de pesquisa na França, ao indagar a diferença entre um empresário sem religião
e outro cristão, a maioria apontou um único detalhe: o segundo vai à missa de
vez em quando. No resto, em nada diferem...
Para Jesus, quem tinha fé? A resposta é desconcertante. Em
Mateus 8, 10, Jesus declara que o homem com mais fé que até então havia
encontrado era um oficial romano, um centurião. Ora, como Jesus pôde elogiar a
fé de um oficial pagão? O episódio demonstra que, para Jesus, a fé não
consiste, em primeiro lugar, naquilo que se crê, e sim no modo de proceder.
Aquele pagão era um homem sensível, solidário, preocupado com o sofrimento de
um servo.
A mesma atitude de Jesus se repete no caso da mulher
cananeia, que também era pagã. A mulher pede a Jesus que lhe cure a filha.
Diante dela, Jesus reconhece: “Mulher, grande é a sua fé!” (Mateus 15, 28).
Grande, não por causa da crença da mulher, e sim por seu procedimento amoroso.
O mesmo ocorre no caso do samaritano hanseniano, curado em
companhia de nove judeus (Lucas 17, 11-19). Os judeus, segundo suas crenças
religiosas, se apresentaram aos sacerdotes, como recomendou Jesus. Já o
samaritano, que não obedecia às prescrições das autoridades religiosas e não se
sentia obrigado a submeter-se a elas, retornou para agradecer a Jesus, que lhe
exaltou a fé: “A sua fé o salvou” (Lucas 17, 19).
Para Jesus, portanto, a fé, antes de se vincular a um
catálogo de crenças, a uma doutrina, se relaciona a um modo de viver e agir.
Jesus, por vezes, duvidou da fé de quem estava mais próximo dele (Marcos 4,
40). Discípulos e apóstolos foram considerados “homens de pouca fé” (Mateus 8,
26).
Jesus fez a desconcertante afirmação que prostitutas e
cobradores de impostos terão precedência no Reino de Deus, e não os
“exemplares” sacerdotes (Mateus 21, 31).
Isso deixa claro quem Jesus reconhecia como crente. Não propriamente quem
aceita o que prega a religião, e sim quem age por amor, solidariedade e
justiça, como o bom samaritano (Lucas 10, 29-37).
Ter fé é, sobretudo, viver de acordo com os valores segundo
os quais vivia Jesus. A igreja está em crise. Suas autoridades culpam o
laicismo, o relativismo, o hedonismo. Ora, será que as autoridades religiosas,
e nós, frades, freiras, padres e pastores, não temos culpa nisso, por
apresentar a fé cristã como verdades cristalizadas em doutrina, e não
expressada em vivência?
Frei Betto
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Postar um comentário
Comenta! Elogia! Critica! É tudo para o Reino!
Considere apenas:
Discordar não é problema. É solução, pois redunda em aprendizado! Contudo, com modos.